A gente precisa ter algo para buscar
Eu estava errado sobre a necessidade de propósitos
Hoje cedo respondi uma pergunta na caixinha do Instagram e que gostaria de trazer o assunto aqui para o substack, ampliar um pouco minha resposta e registrar esse pensamento.
Acha que as pessoas precisam ter um propósito de vida para existência fazer sentido?
Há alguns anos, se você me perguntasse sobre a necessidade de propósito, eu te diria que é papo de coach.
Como animais, nosso propósito biológico é encontrar alimento e nos reproduzir para preservar a espécie.
Um gorila não acorda pela manhã pensando que precisa mudar o mundo, fazer a diferença na sociedade. Um pássaro não espalha sementes de árvores pensando que precisa manter a floresta crescendo.
Os humanos, sendo animais, também não possuem um propósito intrínseco — uma missão atribuída quando nasce.
Apesar deste ser um argumento muito atraente, ele sutilmente nos arrasta para a falácia naturalística — a ideia de que algo é bom ou ruim apenas por ser natural ou, mais ainda, que sua explicação natural basta para explicar um fenômeno.
Mas, se a gente pensar um pouco, animais na natureza também não usam roupas, não comem McDonald’s e não dormem em colchões de mola cobertos com lençóis de 1000 fios num quarto resfriado por ar condicionado.
Conforme evoluímos como espécie, acessamos novas possibilidades e princípios que fogem da nossa natureza, mas que lentamente foram virando necessidades.
Um ancestral longínquo, há 100 mil anos, não sentia necessidade de tomar banho num chuveiro aquecido. Hoje em dia, nenhum de vocês que estão lendo esse texto aceitariam viver numa casa sem um chuveiro quente — isso não significa que não existam pessoas que, pela desigualdade, estejam distantes dessa possibilidade.
Nesse contexto, propósito tornou-se uma necessidade num mundo onde estamos muito distantes dessa natureza, mas que precisamos de uma bússola que nos diga por onde trilhar.
Propósito tornou-se uma necessidade num mundo onde estamos muito distantes dessa natureza, mas que precisamos de uma bússola que nos diga por onde trilhar.
Dito isso, hoje em dia acho que sim, é necessário ter um propósito.
No entanto, também acho que existe um exagero sobre o que significa esse tal propósito.
Propósito virou uma palavra grande, algo que precisa ser incrível, um feito para humanidade e que vai mudar o mundo.
Isso acontece muito porque usar a ideia de propósito como argumento de venda, principalmente na venda de ideologia, é algo muito forte.
É o famoso purpose-driven sales.
Todo mundo passou os últimos 15 anos tomando martelada na cabeça, ouvindo que não basta trabalhar e se sustentar, precisa cumprir um propósito de vida. Hoje em dia, você não compra um celular, mas uma ferramenta para despertar seu potencial criativo e te deixar mais próximo do seu propósito.
A noção de propósito virou até requisito de RH em contratação.
Quando você afirma que trabalha pelo seu propósito, é contraditório demais não se esforçar um pouco mais e ficar até mais tarde.
Inclusive, é fácil pagar menos para quem afirma estar cumprindo um propósito.
Essa pesquisa descreve bem a questão:
Supressão Salarial em Contextos de Impacto Social: Como Enquadrar o Trabalho em Torno do Bem Comum Inibe as Exigências de Compensação de Candidatos a Emprego.
É preciso olhar bem para o que a escolha de palavras do título:
Supressão — denota intenção de cortar, reduzir, eliminar — salarial.
Não é “criar negócios focados num bem comum” e nem “buscar impacto social”, mas enquadrar o trabalho — fazer parecer — como um bem comum.
Inibe — impede, desencoraja — a exigência de compensação dos candidatos.
Não é por acaso que todo mundo, de repente, acordou com a necessidade de ter um propósito maior, algo que seja essa busca de um bem comum.
E se todo mundo tem — ou diz ter — um propósito, por que você seria tão diferente?
Assim surge toda problemática em volta de ter um propósito.
Neste momento, eu sei que você deve estar achando contraditório dizer que propósito virou algo necessário, mas, ao mesmo tempo, mostro como é uma ideia usada para nos manipular.
Digo ser algo necessário porque hoje em dia carregamos esse desejo de buscar algo, mesmo que tenha sido plantado em nós, e que causa um vazio existencial, pensar que vivemos apenas por viver.
Mas a verdade é que um propósito pode ser algo simples e que vai sendo modificado ao longo do tempo.
Pode ser a busca por conhecimento em sua área de interesse, ser um bom pai ou uma boa mãe, um bom parceiro, uma boa referência para alguém, ajudar aqueles que estão perto e convivem com você.
É o tipo de coisa que muitas vezes só vai significar algo para você, e nem parece que tem algum impacto, mas que acaba gerando uma reação em cadeia ao longo do tempo.
A gente fica tentando fazer a diferença no mundo, mas esquecemos que temos muito mais chance de mudar o que está ao nosso redor e isso fazer a vida de todos um pouco melhor, do que tentar mudar o mundo e isso refletir de volta.
De que adianta eu sair daqui, levar remédios e suprimentos para uma zona de guerra, se minha filha está desamparada, minha esposa está sozinha e deprimida porque deixei tudo nas costas dela?
O suposto impacto que eu — um indivíduo — faria por lá é pequeno demais dada as dimensões de uma guerra, mas a diferença que posso causar estando presente dentro da minha casa é gigantesco.
Do que adianta ir para internet lutar pelos direitos dos trabalhadores, e ser insensível com as dificuldades do entregador do iFood que traz minha própria comida.
Ou então ficar na internet criticando ambiente de trabalho tóxico, chefe abusivo, mas na primeira falha de um garçom agir com rispidez, me exaltar e prejudicar seu trabalho envolvendo gerente e proprietário numa polêmica desnecessária.
O propósito é algo pessoal, íntimo e que te ajuda a acordar todos os dias e enfrentar as dificuldades da vida.
Pode ser melhorar num esporte — mesmo que não seja um atleta, aprender sobre os planetas — mesmo que não seja astrônomo, ou conhecer várias partes e culturas do mundo simplesmente porque te encanta absorver essas diferenças.
Pode ser tocar pandeiro e fazer uma roda de samba no final de semana porque é bom ver nossos amigos felizes. Ou ainda, fazer uma horta de temperos porque gosta de cozinhar e experimentar novos sabores.
Nada disso é profundo ou parece causar um impacto gigantesco, mas te ajuda a levantar cedo e atravessar a dura rotina que não nos deixa escolha.
Só que, no fundo, tudo isso, até as coisas que parecem mais individuais e solitárias, afetam diretamente quem está ao nosso redor.
Dá exemplo de coragem que outros, mesmo que ninguém fale sobre isso, vão acabar seguindo. Pode deixar alguém que teve um dia ruim mais feliz, ajudar a espalhar conhecimento para quem está consumido pela rotina e não teve a mesma oportunidade.
Não precisa te deixar famoso ou rico, nem mesmo gerar algum tipo de alarde.
Tem que ser importante para você e te ajudar a atravessar essa vida que já não muito fácil.
Apesar da mudança em relação á necessidade de propósito, o texto dialoga bem com o que foi dito anteriormente.
Para mim, tem sido difícil buscar esse propósito e isso é motivo de bastante sofrimento, justamente por não ter aquele "tchan" na vida. Também vejo que o mundo corporativo tenta capitanear a todo custo essa necessidade a fim de se beneficiar, já que sempre buscamos sair da apatia. Excelente texto.